(II) Lemos e ouvimos dizer muitas vezes que a Natureza,Mãe amantíssima de todas as coisas,tem sido criticada por certos homens, de haver provido o gênero humano com parcos recursos ou sem suficiente provisão. É,todavia, uma acusação menos justa,de chamá-la madrasta,porque impôs a todos a necessidade de prover a vida diária para conservá-la sem o que ela se aniquilaria;se o gênero humano fosse dispensado dessa lei não admitiria outra lei e a terra que habitamos apresentaria um aspecto bem diverso daquele que existe agora.Por essa razão,Pérsio,com argúcia,chamou mestre das artes, o ventre,e não a mão,conforme diz no seu Prólogo:
"Quem ensinou a saudar ao papagaio?E às araras que imitam nossas vozes?O ventre,mestre das artes e inventor de engenho..."
Dessa necessidade, imposta até mesmo aos animais irracionais, surgiram todas as artes,as mecânicas como as liberais,embora não sejam destituídas de perigos,como acontece,aliás com todas as coisas humanas.É forçoso confessar que ocasionam não pouco dano aos artesãos,certos ofícios que eles desempenham,onde esperavam obter recursos para sua própria manutenção e de sua família,encontram graves doenças e passam a amaldiçoar a arte á qual se haviam dedicado, afastando-os do mundo dos vivos.
Enquanto exercia minha profissão de médico, fiz frequentes observações, pelo que resolvi, no limite de minhas forças, escrever um tratado sobre as doenças dos operários; mas, o que se pode notar nas artes mecãnicas em qualquer descoberta,por sua natureza incompleta, apresenta-se ao artífice sob um aspecto rudimentar,devendo ser aperfeiçoado por outro, a mesma coisa acontece nas obras literárias.Assim acontecerá com o meu tratado sobre as doenças dos operários.Ninguém,que eu saiba,pôs o pé nesse campo onde se podem colher messes não desprezíveis acerca da sutileza e da eficácia das emanações.Publico esta obra imperfeita, na íntima intenção de que sirva de estímulo aos outros que nela colaborem, até que se possa obter um completo tratado que mereça um lugar digno no foro médico.É certamente, um dever para com a mísera condição dos artesãos,cujo labor manual muitas vezes considerado vil e sórdido, é contudo necessário e proporciona comodidades à sociedade humana,dever que cabe à mais preclara de todas as artes, como chamava Hipócrates a Medicina, em seus Preceitos,"que também cura de graça e socorre os pobres."
Consideremos quanta comodidade para a vida civilizada trouxeram as artes mecânicas e quanto diferem os Europeus dos Americanos e dos outros povos bárbaros.Com razão,os fundadores das cidades e dos reinos deram,por isso,suma tenção aos operários, conforme provam os antigos documentos dos escritores.Instituíram corporações e sociedades de artífices,como Numa Pompílio que no dizer de Plutarco,mereceu geral admiração por ter dividido os artífices segundo seus ofícios,pelo que tiveram associações próprias, os flautistas, ourives, arquitetos,tintureiros, sapateiros,curtidores,bronzeadores,oleiros,etc.
Conta Lívio que também os cônsules Appio Cláudio e P.Servílio instituíram uma corporação de "mercuriais", assim chamados porque os mercadores veneravam em Mercúrio o deus do comércio,como Vulcão e Minerva,deuses trabalhadores,eram adorados pelos artífices,segundo informa Platão no seu Livro das Leis.
Nosso compatriota Sigônio,em seu "Antigo Direito Romano", e Guido Panciroli em "Notícia de ambos os impérios", falam dos direitos e privilégios que gozavam as corporações de artífices.Foram permitidos votar e receber honrarias,pelo que Sigônio deduz que eles estavam inscritos no censo dos cidadãos de Roma.Os Pandectas e os Códigos fazem menção a fabricantes de barcos,e Gaio J.C.,no livro I,parágrafo"Quod enjusqumque universitatis nosmini vel contra ea ogatur", descreve essas comunidades de artífices,seus direitos e privilégios,com um pequeno estado; administravam seus interresses,elegiam seus representantes e ditavam suas próprias leis,quando estas não fossem contrárias às leis públicas,conforme declara Paulo no livro"Eum Senatus",&"De rebus dubiis".Suetônio conta que o imperador Vespasiano protegeu eficazmente não só as artes liberais como também as manuais, denominadas mecânicas,e,deste modo, deu oportunidade aos mais modestos operários de trabalhar e ganhar; chegou até a responder a um arquiteto que o queria convencer de ser capaz de fazer transportar ao Capitólio uma enorme carga com pequena despesa,que o permitia,caso ele desse comida aos seus pobrezinhos.
Não só nos tempos antigos,mas também na nossa época,os governos bem constituídos têm criado leis para conseguirem um bom regime de trabalho,pelo que é justo que a arte médica se movimente em favor daqueles que a jurisprudência considera de tanta importância, e empenhe-se,como até agora tem feito,em cuidar da saúde dos operários,para que possam,com a segurança possível, praticar o ofício a que se destinaram.Eu,quanto pude,fiz o que estava ao meu alcance,e não me considerei diminuído visitando,de quando em quando,sujas oficinas(já que, em nossa época, a medicina tende para o mecanismo,de certo modo, e as escolas nada mais tratam senão de automatismo) a fim de observar segredos da arte mecânica.Confio,todavia na indulgência dos nossos nobres mestres,porque é evidente que em uma só cidade, em uma só região, não se exercitam todas as artes,e, de acordo com os diferentes lugares, são também diversos os ofícios que podem ocasionar várias doenças.Das oficinas dos artífices,portanto,que são antes escolas de onde saí mais instruído,tudo fiz para descobrir o que melhor poderia satisfazer o paladar dos curiosos,mas,sobretudo,o que é mais importante, saber aquilo que se pode sugerir de prescrições médicas preventivas ou curativas,contra as doenças dos operários.E assim, o médico que vai atender a um paciente proletário não se deve limitar a pôr a mão no pulso,com pressa,assim que chegar,sem informar-se de suas condições; não delibere de pé sobre o que convém ou não convém fazer,como se não jogasse com a vida humana;deve sentar-se,com dignidade de um juiz, ainda que não seja em cadeira dourada,como em caso de magnatas;sente-se mesmo num banco,examine o paciente com fisionomia alegre e observe detidamente o que ele necessita dos seus conselhos médicos e dos seus cuidados piedosos.Um médico que atende um doente deve informar-se de muita coisa a seu respeito pelo próprio e pelos seus acompanhantes,segundo o preceito do nosso Divino Preceptor;"quando visitares um doente convém perguntar-lhe o que sente,qual a causa,desde quantos dias, se seu ventre funciona e que alimento ingeriu",são palavras de Hipócrates no seu livro "Das Afecções"; a estas interrogações devia-se acrescentar outra:" e que arte exerce?"Tal pergunta considero oportuno e mesmo necessário lembrar ao médico que trata um homem do povo,que dela se vale chegar às causas ocasionais do mal, a qual quase nunca é posta em prática,ainda que o médico a conheça.Entretanto,se a houvesse observado, poderia obter uma cura mais feliz.
Acolhe,pois,benevolamente,amigo leitor,este meu tratado,embora escrito com pouca arte,que,porém procura beneficiar o Estado,ou pelo menos,auxiliar os artífices.E,se isso te agrada,PERDOA,POIS O QUE ESTÁ ESCRITO NÃO VISA A NOSSA GLÓRIA,PORÉM SER ÚTIL ÀS PROFISSÕES.
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