sexta-feira, 26 de fevereiro de 2010

PARÁBOLA

Tetragrammaton vivia na quarta dimensão.Era bom,poderoso,inteligente e feliz.Por isso desejava ardentemente comunicar sua felicidade.O problema estava-ele sabia disso-no fato de que,ao fazê-lo,devia produzir seres distintos dele:seres da terceira dimensão,isto é, seres inferiores,limitados,incapazes de compreendê-lo e praticamente cegos para a totalidade do real.Sim,como pode o ponto compreender a linha?Que sabe a linha da grandeza de sua superfície?O que a superfície retém da profudidade dos corpos?Que relação poderiam ter alguns seres tridimensionais com o abismo onicompreensivo da quarta dimensão? E havia algo mais grave:esses seres estranhos e quase impossíveis deveriam arcar com as consequências das próprias e inevitáveis limitações,nomeadamente,o sofrimento da escassez,a tragédia do desajuste,a luta pela sobrevivência.
Tetragrammaton estava em dúvida.Valeria a pena? A felicidade que pretendia dar-lhes compensava a dor que não poderia evitar-lhes? Chegariam eles a compreeder e aceitar?
Mas a força do amor acabou vencendo.Ele estava disposto a fazer todo o possível e a perdoar todo o necessário.Além disso,pensou:de qualquer modo,sua substância mais íntima, o dinamismo profundo de seu ser,o próprio espaço em que habitam,levarão minha marca.De alguma forma acabarão pressentindo-me em tudo aquilo que sentirem,pensarem ou fizerem.Estando atento,pressionando com todos os meios do amor,conseguirei fazer-me notar.Cedo ou tarde aprenderão a pronunciar meu nome.
E assim tomou a decisão e começou a aventura.
Tetragrammaton,que de sua quarta dimensão tudo vê e tudo compreende,não desiste de seus projetos.Procura por todos os meios,dar-se a conhecer.Aproveita qualquer circunstância para fazer sentir mais claramente a sua presença.
Nem tudo é fácil,mas segue em frente.Na terceira dimensão,parece que muitos nem se apercebem.Outros sim.E até há indivíduos que demonstram uma sensibilidade especial.Então ele, aproveitando a abertura e sem forçar-lhes a liberdade,os estimula a ir em frente,fazendo-os sentir sua fascinação.Eles,por sua vez, entusiasmados pela descoberta,compreendem que Tetragrammon é o nome daquele que desde sempre estava ali,chamando a todos,e por todos de algum modo pressentido.Por isso não conseguem guardar o segredo:proclamam sua experiência e gastam a vida procurando fazer com que enfim,todos possam ir se dando conta.
Como sempre,uns se importam e outros não,uns compreendem bem e outros compreendem pela metade ou não compreendem nada;há os que acham graça e não faltam os que ficam enfurecidos;em outros ambientes não negam a experiência,mas apresentam explicações alternativas.Em todo caso,a compreensão é sempre contagiosa e expansiva.Uma experiência chama outra experiência,e cada avanço abre novas possibilidades.Criam-se comunidades e formam-se tradições.Tetragrammon não perde nenhuma ocasião.Onde há uma descoberta,alegra-se como um pai observando os primeiros passos de seu filhinho,e há quem diga que inclusive o seu coração se alegra.Apóia a todos e está atento à menor possibilidade.
Aconteceu então que um dia apareceu um pontinho no horizonte que,por sua situação,por sua sensibilidade,pelo jogo misterioso das circunstâncias,oferecia possibilidades peculiares.Assim como ele faz com todos em suas possibilidades,cultiva com cuidado as possibilidades típicas desse pontinho e consegue que nele se vá descobrindo um a um os projetos mais íntimos que estão destinados a todos.Chega um momento em que naquilo que a terceira dimensão permite,consegue o que parecia impossível;surge alguém que,enfim,se abre totalmente a ele e compreende que seu amor é uma presença irreversível,que sua promessa é mais forte do que todos os erros.Algo tão magnífico que consegue efetivamente contagiar os poucos que vivem nos primórdios acabam formando uma espécie de phylum expansivo que se abre ao inteiro âmbito da terceira dimensão.
Entretanto,apesar das aparências,Tetragrammon não abandona os demais e continua cultivando-os com igual carinho e com toda fecundidade permitida pelas suas circunstâncias e pela sua liberdade.O que naquele phylum poderia parecer um privilégio de "escolhidos"-e muitas vezes eles, o que é uma pena,assim o pensavam-nada mais é que um novo modo da estratégia de seu amor para com todos;cultivar intensamente as possibilidades de cada um é o melhor modo de alcançar mais plena e rapidamente os outros.No intercâmbio todos saem enriquecidos.Mesmo assim;é inevitável que nem todos compreendam e que surjam imediatamente lutas e rivalidades; na escassez da terceira dimensão,todos querem ser únicos e privilegiados.Mas os que estão no segredo sabem que Tetragrammon sorri compreensivo;pensa em todos,e a todos envolve com idêntico amor.
Além disso, guarda uma surpresa misteriosa que só ele pode compreender e realizar;um dia acabará rompendo os limites de seu espaço para reunir todos na quarta dimensão.Ali seus olhos se abrirão.
Enquanto isso,ele ama,acompanha,apóia... e compreende.
(A.T.Queiruga,Autocompreensão cristã-Diálogo das religiões-S.P.:Paulinas,2007-trad:José Afonso Beraldo da Silva,pp200-203)

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